sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Episódio da dor de Rosa ou "A morte do velho curandeiro"

Como todos os dias, ela saiu, mata adentro, em busca das ervas medicinais e das determinadas pétalas de minúsculas flores, necessariamente cobertas de orvalho, para o preparo do remédio do pai.
         Havia um agrado nesses pequenos gestos – algo na rotina das pequenas coisas que lhe impelia a cantarolar no caminho, dançar sozinha pelos pastos, sorrir à gente hostil e ingrata que a desdenhava. Havia um orgulho em citar ou evitar certos nomes, sagrados ou profanos; em conhecer as propriedades, curativas ou não, das plantas no caminho. Ela sequer percebia o que sentia, tão naturais eram seus passos. Uma vez reunidos os ingredientes necessários, ela corria de volta à choupana escondida no vale e preparava a mistura de infusões e elixires. Com carinho, com precisão, com sabedoria. Dado o remédio, o pai voltava a dormir e ela preparava a tapioca. Um gole de café, forte e amargo, e um instante de descanso na entrada da choupana. Todos os dias vinha o sabiá e ela lhe jogava as migalhas dos pães. À tarde o trabalho na lavoura, na horta, catar arroz, preparar o almoço e um cochilo na rede. Depois algum conserto, algum trato na choupana, alguma costura. Alguma roupa a lavar e o banho no regato. Ao fim de toda tarde ela se aproximava dele. Tentava não acordá-lo. Aos poucos sentia seu cheiro de árvore; tocava lentamente a pele dura de seu braço; lhe beijava de leve a testa e sentia seu gosto de terra. Olhava sua aparência frágil e o pensava verde. O verde de seus olhos associado à toda sua pessoa. Então ele despertava de sua hibernação e a chamava pelo nome: Rosa. Ela sorria à sua voz rara e contava-lhe sempre a mesma história de pirata. Ao cair da noite, dormiam: pai no jirau, filha na rede. Assim acontecia todos os dias, anos a fio, desde o fuzilamento.
         Naquela tarde ele perguntou: onde estão tuas duas mães?
         Naquela noite ele pediu: conta-me a história de minha vida.
         Naquela madrugada ela não consegiu dormir.
         Naquela manhã ela saiu aflita a buscar uma planta de nome impronunciável. A única, a última. Sem cantarolar pelo caminho, nem dançar pelos pastos, nem pedir ajuda às gentes. Quantos anos se passaram? Valera a pena adiar por tanto o inevitável? Sua dor e desengano conduziam seu choro e seus soluços. Procurou desesperada por toda mata. Subiu e desceu montanhas todo o dia. Onde estava aquela flor miúda e sem nome? A última, a única. Sentiu-se culpada. Culpada por sua dor em saber quais ervas e infusões e misturas estancariam o sangue e prenderiam à vida o corpo do pai. Melhor seria nada saber? Melhor seria deixá-lo partir, como partiram suas duas esposas? Lembrou-se dos soldados no dia do fuzilamento. Lembrou-se da cor verde, que era a cor do pai. Chorou angustiada Rosa. Correu de volta à choupana e ele gemia o mesmo sussurro de quando, estirado no pátio do paço municipal, sangrava e ditava à criança a fórmula necessária para mantê-lo vivo: as palavras secretas, o gesto preciso e a ordem das misturas.
         Então, de joelhos, agarrou as mãos fracas do curandeiro e, a chorar sobre suas longas barbas, não sentiu seu cheiro de árvore e seu gosto de terra. Gritava pelo pai, cuja pele morena de Alentejo perdia aos poucos a cor. Ao ver sua camisa manchada de vermelho, prontamente a rasgou de alto a baixo e pôde ver as feridas há anos abertas jorrando o sangue há anos estancado. Gritava pelo pai, ensopado de sangue. O sangue manchando as mãos da moça, seu vestido, seus cabelos castanhos.
         Então o verde que ali habitava cessou e Rosa partiu.



Assis Furtado
Conto publicado na
Revista da Academia Cachoeirense de Letras, nr. 18;
Cachoeiro de Itapemirim – ES, 2005
www.academiacl.com.br

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